8/12/2021

A REVELAÇÃO DIÁRIA

A teologia, desde há muito, ao tratar da revelação de Deus, divide o tema em duas esferas: a revelação natural e a especial. A especial se dá nos escritos considerados sagrados e surgiram no âmbito do povo judeu ao longo de muitos anos. A natural, baseada em textos escriturísticos vétero e neotestamentários, afirma haver uma revelação de Deus nas coisas criadas. Para tanto são usados textos como: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo (Sl 19:1-4) e “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis” (Rm 1:20).

No entanto, a teologia do senso comum, tem afirmado limites para as duas formas de revelação. Para a revelação natural, que é a que se tem através das coisas criadas por Deus, se afirma que ela não é suficiente para a salvação, mas somente serve como indicativo do poder de Deus. Para a teologia especial, afirma-se que a revelação de Deus acabou com o último livro que existe no cânon sagrado.

Com isto, a teologia delimita as capacidades revelatórias das coisas criadas e da revelação especial de Deus. Por que o fazem? Já ouvi muita coisa tentando explicar, mas, como fui treinado a fazer perguntas, questiono as duas posições. Se considero alguns paradigmas de interpretação dos fatos que grandes pensadores trouxeram à humanidade, sou obrigado a inquirir sobre estes dois axiomas teológicos.

O primeiro que emprego é o paradigma marxista de que todas as relações são relações econômicas. Em outras palavras, qual o ganho econômico que há em se afirmar a limitação das duas revelações? O segundo é o foucaltiano que diz que todas as relações são de poder. Qual o poder ou disputa de poder que existe ao limitar os parâmetros da revelação? O terceiro é o da teoria sistêmica que pergunta: qual o ganho que se tem ao permanecer no estado de coisas ou na mudança do quadro de relações?

Os três, ao que me parece, trazem à luz uma nova visão. O problema era que, deixadas as revelações natural e especial abertas, qualquer pessoa poderia “escrever um livro sagrado” ou alegar fatos da criação para sustentar sua religiosidade. No exercício do seu poder, os sacerdotes impuseram um limite às revelações. Com isto ganhavam status e o seu poder econômico era fortalecido, porque a religiosidade ficava centralizada e limitada às esferas delimitadas pela classe sacerdotal.

Na história da formação do cânon percebe-se a tensão existente entre os vários grupos e seus interesses econômicos e de poder. Para exemplo, cito o caso de Marcião, que negava a autoridade do Antigo Testamento e foi execrado, julgado e condenado pelos bispos das grandes igrejas. A controvérsia sobre os vários cânones do Antigo Testamento que contrapõe católicos e protestantes é exemplo disto e a que ganhou foi a versão dos poderosos.

Logo, pergunta-se: o cânon, tal como temos, é a expressão da vontade de poderosos? Devo concluir que sim. Ele se prestou e ainda presta à imposição de uma visão que interessa a um grupo de pessoas com funções religiosas/sacerdotais.

Se me liberto destas amarras e passo a olhar as coisas criadas como algo que Deus revela a mim naquele momento, escapo dos tentáculos da religiosidade templária e enveredo pelos caminhos da liberdade, tal como afirmou Paulo “onde há o Espírito, há liberdade.” (II Co 3:17). Passo a ter uma religiosidade (no sentido positivo do termo “re-ligare”) e desfruto das coisas criadas de forma mais autêntica e não mediada pelos profissionais da religião.

É a religiosidade não institucionalizada!

Marcos Inhauser

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ESTADO ESQUIZOFRÊNICO

Não é de hoje que falo, escrevo e protesto contra o Estado brasileiro nos seus diversos níveis. Há nele um aperfeiçoamento célere quando s...