Imagine que, em uma sociedade comunista, um determinado cidadão se comporte como capitalista e burguês. Busca por todos os meios a riqueza pessoal e o acúmulo de bens. Ele será um estranho no ninho, mas o poder o verá como menos perigoso que alguém que, refletindo e questionando, critica os poderosos de plantão. O capitalista é menos perigoso que o filósofo para a sociedade comunista, ditatorial ou com aspirações totalitárias.
Há que se recordar que, durante a ditadura militar brasileira, os perseguidos, em sua maioria, foram artistas (Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Caetano Veloso e outros), economistas (José Serra, Fernando Henrique) educador (Paulo Freire) e tantos outros que foram exilados. Quem pensava era um risco ao poder. No Chile de Pinochet os inimigos eram o cantor e compositor Victor Jara e o grupo musical Inti Illimani.
Se o filósofo é mais perigoso que o burguês para a sociedade comunista, também o profeta é um atentado ao poder. Não é para menos que eles foram, no dizer do escritor da epístola aos Hebreus: “... torturados, não aceitando seu resgate, para obterem superior ressurreição; outros, por sua vez, passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada; andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos, maltratados (homens dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, pelos montes, pelas covas, pelos antros da terra.” (Hb 13:35-38)
Lembro-me do arcebispo salvadorenho Oscar Romero. Profeta em sua nação, incomodava os militares que estavam no poder. Ameaçado de morte disse: “Se me matam ressuscitarei no meu povo salvadorenho”. E foi o que aconteceu porque o bispo morto falou mais alto que o bispo vivo.
Conheci o Bispo Luterano Medardo Gomes, salvadorenho. Com ele estive algumas vezes, inclusive em El Salvador e Santa Tecla. Foi, em certa medida, o sucessor de Romero na ação profética. Um dia ele colocou uma cruz de madeira enorme no templo e pediu que a igreja pregasse na cruz papeis com os pecados da nação. A cruz se encheu de pequenos pedaços de papel. Ela ficou no templo como sinal profético de denúncia das atrocidades cometidas contra o povo.
Um dia a cruz foi roubada. Tempos depois os militares a devolveram porque ela roubada e desaparecida era mais eloquente que fisicamente presente no templo. Fui visitar o bispo e era o dia em que a devolveram e ele conclamou o povo para receber a “cruz roubada”. Uma multidão acudiu ao chamado. Ela voltou sem os papeis pregados. Medardo pregou: “tiraram os papeis, mas não conseguiram apagar os sinais dos pregos”.
Há quem queira silenciar os profetas, artistas, profetas, criticando-os, ou denunciando-os ao poder. Assim fizeram muitos religiosos no golpe de 64, entregando colegas pastores, padres e bispos. Os profetas padecem da síndrome de Jeremias: “Não posso calar-me, porque ouves, ó minha alma, o som da trombeta, o alarido de guerra” e “Persuadiste-me, ó SENHOR, e persuadido fiquei; mais forte foste do que eu e prevaleceste; sirvo de escárnio todo o dia; cada um deles zomba de mim. Porque, sempre que falo, tenho de gritar e clamar: Violência e destruição! Porque a palavra do SENHOR se me tornou um opróbrio e ludíbrio todo o dia. Quando pensei: não me lembrarei dele e já não falarei no seu nome, então, isso me foi no coração como fogo ardente, encerrado nos meus ossos; já desfaleço de sofrer e não posso mais.”
Marcos Inhauser
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