2/15/2022

O QUÊ MARIA DIRIA?

Sou vidrado em música de Natal. Nenhum outro evento da humanidade produziu tantas e tão maravilhosas músicas como o Natal. Devo ter umas 700 delas em meus arquivos e as ouço com frequência, sendo ou não tempo de Natal.

Uma delas é “Mary, did you know?” (Maria, você sabia?) cuja letra pergunta à Maria se ela tinha ciência de que Jesus faria tudo o que fez. Esta música e letra me levaram a pensar na seguinte suposição: se Maria ressuscitasse e fosse assistir a uma das cantatas de Natal apresentadas em muitas das igrejas, se ela visse os presépios com os animais ao lado do bebê deitado em palha, se ela lesse o que está nos evangelhos relatando como foi a gravidez e parto de Jesus, o que ela diria? Ele se veria nos relatos?

Li que Mandela, quando quiseram fazer um filme sobre a sua vida (Invictus), decidiu quem seria o ator (Morgan Freeman) e quis ver o filme antes de ser finalizado. Queria ter a certeza de que as “licenças cinematográficas” não tinham deformado o personagem. Li também de outro personagem que foi retratado nas telas e que, quando assistiu ao filme sobre a sua vida, disse: “esse não sou eu”. O Jesus retratado por Mel Gibson é um atentado: nunca soube de um corpo que jorrou tanto sangue quanto o Jesus deste filme. Exagero puro!

Sabe-se que os três primeiros evangelhos foram escritos a partir do ano 50 d.C., pelo menos dezessete anos depois dos fatos que narram. Sabe-se também (ainda que conservadores refutem esta afirmação), os escritores dos evangelhos não foram testemunhas oculares dos fatos, mas escreveram a partir de investigação que fez (Lucas) ou das narrativas orais que circulavam nas igrejas. O evangelho de João, escrito mais tarde, no entender de alguns estudiosos, não é autoria de uma pessoa, antes é um editor que recolheu as reflexões da comunidade joanina, razão pela qual o quarto evangelho é mais denso e teológico.

Não é de se estranhar que as narrativas evangélicas possam ter passado por um processo de “licença histórica”, dando ao personagem certas cores mais acentuadas do que na realidade foram. Os escritores dos evangelhos não eram historiadores (prova disto é que a sequência dos fatos apresentados nos evangelhos difere na cronologia), nem eram jornalistas com capacidade descritiva aguçada. Eles escreveram em um ou mais tipos de gênero literário que estudiosos têm apontado. Um deles, brasileiro, Francisco Leite, em seu livro “Ele está Fora de Si”, disseca os gêneros literários presentes nos evangelhos e mostra um texto do evangelho de Marcos onde faz uma hermenêutica maravilhosa.

Acredito que Maria, se ressuscitasse e lesse ou ouvisse as histórias sobre Jesus, teria vários senões e reparos. Isto não desmerece a história, mas autentica os detalhes. Há nos relatos uma essência: um nascimento simples e humilde. Sem pompa e luxo, uma infância atribuladas por questões políticas, a necessidade da migração para sobreviver, o período de espera, um ministério que começa em um casamento mal planejado porque o vinho acabou, uma peregrinação pela periferia de uma nação periférica e dominada pelo invasor, pais que tinham que pagar pesados impostos aos coletores, a mensagem “fora da caixa” que era constantemente bombardeada pelos “donos da religião”, um final trágico com a crucificação e uma ressureição para a glória eterna.

Muitos pregadores da prosperidade excluem da vida de Jesus o Getsemâni, porque o lugar do sofrimento. O Cristianismo sem o Getsemâni é anti-evangelho. O evangelho do sucesso é a negação do evangelho, uma aberração.

No Natal os pastores (o chão da sociedade) foram contemplados. Se foi na estrebaria, até os animais participaram, como retratam os presépios. Algo sem pompa e circunstância. Um Natal inclusivo para os esquecidos e excludente para os ricos e poderosos!

Marcos Inhauser

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