11/11/2021

BIBLIOLATRIA

A Bíblia não é a revelação, ela é a testemunha da revelação. Ela é o meio pelo qual, usando antigos escritores que afirmam ter recebido da parte de Deus um conhecimento, somos informados disto. Não é o próprio Deus falando, porque, mesmo onde se diz que “veio a mim a palavra do Senhor dizendo”, é o testemunho de alguém que afirma ter ouvido e não é o próprio Deus chegando até nós. A Palavra de Deus é mediatizada pelo escritor.

A fórmula de Lengzfeld, precisa ser lembrada: "Se um dia uma expressão humana se encontrasse num relacionamento de identidade imediata e absoluta com a realidade divina, esta expressão já seria a manifestação insuperável e definitiva de Deus tal como o esperamos ver na eternidade. Então o logos da linguagem humana não deveria apenas comunicar a revelação, mas seria esta própria” (Citado por Doré, L Ancient Testament: Approaches et lectures, in ELLUL, Jaques. A Palavra Humilhada, Ed. Paulinas, SP, 1984, p. 77).

Quando pessoas como a Bíblia como algo sagrado em si,, que a colocam como amuleto em seus negócios, no porta-luvas do carro, ou a usam para tocar partes doloridas ou enfermas, estão cometendo aberrações. Usam o meio como fim.

Lembro-me de, no Instituto Bíblico onde comecei meus estudos, que um dia, um destes sacrossantos defensores da Bíblia, pregou um sermão exortativo de quase 50 minutos porque havia encontrado uma velha Bíblia, já caindo aos pedaços, no lixo. Para ele isto era blasfêmia.

John Mackay tem um capítulo em um livro que não me recordo o nome, onde ele faz a seguinte analogia: tem-se um telescópio em uma sala, preparado para observar os astros. Este é seu objetivo: trazer para perto o que está longe. Alguém chega e, ao invés de olhar pelo telescópio, ficando olhando o telescópio e falando das maravilhas que ele faz, sem nunca olhar através dele. Assim é a Bíblia: um telescópio para melhorar nossa visão sobre as coisas divinas. Mas muitos olham para a Bíblia como esse ela fosse o objeto de adoração. Um fim em si mesma. De instrumento de aproximação, passa a ser objeto de adoração. É a bibliolatria!

Marcos Inhauser

PALAVRA E A FÉ

Já postei aqui que a palavra se torna Palavra na medida em que tenho com ela uma experiência vital e ela passa a fazer parte de mim e das minhas ações. Acerco-me ao texto, especialmente ao texto bíblico, com reverência e fé. Há uma dimensão dupla: experiencial no sentido de que meus sentidos estão focados no que tenho à frente: o cheiro do papel, a cor do papel e das letras, possíveis ilustrações, o peso da Bíblia, a encadernação, etc. Tenho diante de mim uma coisa palpável. É também uma experiência transcendental porque posso ter contatar-me com o Numinoso, o Transcendente.

“A vista nos conduz para fora da relação de fé, porque nos leva sempre a uma realidade que queremos captar e que nos orienta necessariamente para a prova. O que vemos implica uma possibilidade de prova. É exatamente o que Tomé pede e ao que Jesus responde. Tomé teve provas: o invisível, o tangível, o experimental estão estreitamente associados. Mas, onde há prova ou exigência de prova, existe outra relação além daquela suposta pela fé. Crer sem demonstração e sem nada para ver, porque se estabelece a relação de confiança com aquele que falou. A palavra só tem alcance se confio naquele que me fala. A veracidade da palavra não se prende nem a seu conteúdo objetivado, nem à coerência lógica, mas àquele que a pronuncia e neste caso não posso trilhar o mesmo caminho exigido pela vista. A Palavra para ser ouvida supõe a fé, mas a fé nasce da Palavra que me é dirigida. A fé vem daquilo que se ouve", diz Paulo.” (ELLUL, Jaques. A Palavra Humilhada. Edições Paulinas, SP, 1984, p. 77)

Quando me acerco do texto da revelação, posso e devo usar métodos e técnicas de leitura. Não fazê-lo é dar chances a que o texto me diga o que não está nele. Por outro lado, ao fazer a leitura com a mediação da fé, o texto pode saltar da realidade empírica do livro para fazer parte da minha vida. Paulo, escrevendo aos Coríntios disse que eles eram “a nossa carta, escrita em nosso coração, conhecida e lida por todos. Vocês manifestam que são carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações.
E é por meio de Cristo que temos tal confiança em Deus.” (2 Co 3:2-4).

O importante é ler, entender e vivenciar o que se experiencia com o texto.

Marcos Inhauser

AS LEITURAS FÍSICA E VIRTUAL

Há, basicamente, duas fontes onde lemos: a física (o livro, jornal, teses e revistas impressos) e a virtual (e-books, mídia de jornais, revistas, teses, etc.) Chris Meade, que utiliza vários tipos de mídia para veicular seu trabalho, traz esta reflexão: "pensamos no livro como a obra, mas o livro é apenas um mecanismo de entrega". Isto também se aplica a todos os outros meios, inclusive as postagens em blogs e redes sociais.

Nestes tempos de múltiplas formas de entregar ao leitor o que se escreve cunhou-se a expressão “transmídia”: aquela cujo enredo se desenvolve nas várias plataformas, aplicativos, livros digitais, games, quadrinhos, blogs. Os consumidores podem assumir um papel ativo no processo de construção do conteúdo. Elas permitem o surgimento de uma nova geração de escritores, levando-nos a perceber que não há um tipo de 'boa escrita', mas permite que pessoas compartilhem histórias e experiências (Natalie A. Carter). Isto leva a um outro posicionamento: “não importa o meio, é a história que importa" (Melissa Cummings-Quarry).

Um meio bastante usado nestes tempos de muito congestionamento é o áudio livro, que se pode “ler” sem ter o acesso direto ao texto. Outro que tem se popularizado é a leitura de resenhas para que se inteire do conteúdo lendo poucas linhas. É um condensado do livro ou tese.

Confesso que, tendo tomado gosto pela leitura lendo gibis, romances para adolescente e aventuras de viagens, tomei o gosto/vício de ter nas mãos o livro físico. Já tentei, muitas vezes ler o digital, mas, para mim, não é a mesma coisa. Brinco dizendo que o papel do livro é afrodisíaco e me leva a prazeres inesperados. Não leio livro emprestado porque só sei ler com lápis ou caneta na mão. À medida que leio, anoto, sublinho, adiciono minhas reflexões. Quando, passado algum tempo, volto a eles, reconstruo o mundo que imaginei na primeira leitura, sempre com adições na arquitetura.

Há um dado que a física não explica: nunca senti o peso de um livro que o tenho na posição de leitura, mas um notebook, tablet, Ipad, Kindle, ficam pesados. Eu me canso duplamente: com o peso e a necessidade extra de atenção.

Meu DNA não tem habilidades para a era digital, ainda que me esforce para atualizar e tirar proveito dela. No concerto da modernidade, com seus teclados e telas, sou um músico medíocre.

Marcos Inhauser

A LEITURA PROFUNDA

Há duas formas mais consumidas de leitura: a feita no papel (física) e a feita nas telas dos tablets, computadores e celulares (virtual). Todas as duas têm por objetivo prover novas informações que geram conexões múltiplas cerebrais, fazendo com que ele seja “somatizado” (passe a fazer parte do corpo).

Estudos feitos sobre a eficácia dos dois métodos no processo de retenção/somatização das novas informações são reveladores da eficácia de cada um. No entanto, antes, devemos considerar que a fala é um processo “natural”, pois a emissão de sons é algo que vem no kit básico de conhecimentos que uma criança tem ao nascer. Não precisamos ensiná-la a chiar, resmungar, emitir grunhidos. O falar é um processo de habilitação de uma habilidade natural. Já o ler e escrever depende do aprendizado regular, constante para o desenvolvimento destas habilidades. Estas novas “informações” são processadas nos circuitos neurais e, a partir de certo momento, passam a ser “naturais” nas habilidades humanas.

Exemplifico: uma criança, em qualquer parte do mundo, que viva em ambiente onde as pessoas no seu entorno conversam entre si, sua linguagem será naturalmente ativada. Para aprender a ler e escrever, ela precisa de professores, escola e muita prática, pois implica na aquisição de um código simbólico completo, visual e verbal. Em termos de experiência humana, a fala é muito mais antiga (tem a idade da humanidade), mas a leitura e escrita existem há não mais de seis mil anos. Começou de forma simples, para marcar e controlar a quantidade de algumas coisas e, com a invenção do alfabeto e sistemas alfabéticos, passamos a armazenar e compartilhar conhecimento.

Assim, ler é uma habilidade que muda o cérebro, pois ativa de forma drástica os neurônios, permitindo fazer novas conexões entre regiões visuais, da linguagem, pensamento e emoção. Ler ativa a imaginação porque ela tem a capacidade de nos fazer imaginar o mundo descrito em uma novela, romance, conto ou mesmo em uma descrição científica. O mundo se abre para quem lê e escreve. Nas palavras de Cressida Cowell, escritora de literatura infantil, a “leitura traz três poderes mágicos: criatividade, inteligência e empatia". A biblioterapeuta Ella Berthoud afirma que "ler uma grande história é muito mais do que entretenimento ... tem muitos benefícios terapêuticos. Seu cérebro entra em um estado meditativo, um processo físico que retarda o batimento cardíaco, acalma e reduz a ansiedade".

Na Grécia Antiga, avisos colocados nas portas das bibliotecas alertavam os leitores de que estavam prestes a entrar em um local de cura da alma. No século 19, psiquiatras e enfermeiras prescreveram leituras para seus pacientes, da Bíblia até crônicas de viagens e textos em línguas antigas.

Sabe-se hoje que a leitura aguça o pensamento analítico, ajuda a discernir melhor padrões, e a entender comportamentos desconcertantes dos outros e nossos. Esses benefícios, no entanto, dependem da "leitura profunda". "Quando lemos em um nível superficial, estamos apenas obtendo a informação. Quando lemos profundamente, estamos usando muito mais do nosso córtex cerebral" (neurocientista Maryanne Wolf). "Leitura profunda significa que fazemos analogias e inferências, o que nos permite ser humanos verdadeiramente críticos, analíticos e empáticos." Ela ainda afirma que "a certa altura, quando uma criança vai da decodificação à leitura fluente, o caminho dos sinais através do cérebro muda. Em vez de percorrer um trajeto dorsal (...), a leitura passa a se deslocar por um caminho ventral, mais rápido e eficiente. Como o tempo depreendido e o gasto de energia cerebral são menores, um leitor fluente será capaz de integrar mais seus sentimentos e pensamentos à sua própria experiência" ... "O segredo da leitura está no tempo que ela libera para que o cérebro possa ter pensamentos mais profundos do que antes."

Uma coisa é ler, outra bem diferente é “leeeeer”!

PS. As informações estão baseadas em dados da BBC “O que a leitura em telas faz com nosso cérebro?"

Marcos Inhauser

A PALAVRA QUE SE TORNA PALAVRA



A simples menção do seu nome produz urticária em muita gente: Karl Barth. Quem o estudou tem por ele respeito pela densidade do seu pensamento, pela criticidade ao liberalismo e pela sua compreensão da graça divina. Quem só ouviu falar dele, provavelmente só saiba o que ele afirmou: a Bíblia não é a palavra de Deus, mas se torna palavra de Deus.

Ele afirma que se deve distinguir a revelação do testemunho da revelação. Para ele, a Bíblia é a forma como a revelação chega a nós. Os escritores originais eram os depositários da revelação. A Bíblia é o testemunho da revelação e ambas estão unidas.

A Bíblia em si não é revelação ou Palavra de Deus em si mesma e não se pode ter a Palavra de Deus guardada na estante. A revelação não é possessão humana, mas de Deus. Não é a avaliação pessoal ou da comunidade que a torna Palavra de Deus, pois ela se torna Palavra de Deus por ação da liberdade da graça, que faz com que o testemunho se torne revelação para o leitor/ouvinte. O receptor original viu e ouviu e disto testemunhou.

A Palavra de Deus não é objeto, mas evento. Não é estática, mas dinâmica. Não é passado, mas atualizada cada vez que a lemos. Ela é viva e eficaz. Ela se torna Palavra quando temos com ela uma experiência em que se torna vivida por nós.

Barth vê a Bíblia como coleção de textos humanos. O divino nas Escrituras não anula as características humanas, inclusive a falibilidade de seus escritores. Diferentemente da abordagem conservadora, Barth entende que os escritores bíblicos não distinguiam história de lendas ou sagas como fazemos modernamente. Devemos nos colocar diante desses textos crendo na Palavra de Deus que dela pode emergir. Este ministério é a ação do Espírito Santo fazendo com que o texto tenha aplicabilidade e vivência na vida dos leitores/ouvintes.

Este posicionamento é, a meu ver, muito mais rico e dependente da graça de Deus. Cada vez que me acerco ao texto, oro e espero que ele seja experiencial na minha vida e quando isto acontece, a Palavra de Deus se somatiza na minha vida. Não fico discutindo o sentido exato, mas, como diria um dos pioneiros da anabatismo, Hans Denk, “Ninguém pode conhecer verdadeiramente a Cristo, se não seguí-Lo durante a vida”.

Marcos Inhauser

AS PALAVRAS COM SIGNIFICADO ZERO

A teoria comunicacional, especialmente a sistêmica, tem o conceito de discursos que têm significado zero. Vou dar um exemplo: o professor coloca na lousa já cheia de coisas que ensinou, a seguinte nota: “tudo o que eu escrevi nesta lousa é mentira”. Quem vê isto fica pensando: se tudo o que está na lousa é mentira, então tudo o que ele ensinou é mentira, mas se tudo é mentira, até a mesma afirmação de que é mentira é uma mentira, logo tudo passa a ser verdade.”

Para que uma alocução tenha significado zero, as duas partes devem ter pesos iguais. Se a primeira parte é mais fraca que a segunda que nega a primeira, esta prevalecerá. Se a segunda parte é mais fraca que a primeira, prevalecerá.

Quando hoje vi a declaração do presidente à PF sobre a sua suposta ingerência no comando da Polícia Federal, conforme denúncia do ex-ministro da Justiça, de imediato conclui que se tratava de afirmação de significado zero: “não interferi, mas queria alguém com quem tivesse interlocução”.

Depois de um tempo, reavaliei a conclusão e percebi que há pesos desiguais nas afirmativas. As primeiras (“falta de interlocução que havia entre o presidente da República e o diretor da Polícia Federal; que não havia qualquer insatisfação ou falta de confiança com o trabalho realizado pelo DPF Valeixo, apenas uma falha de interlocução;”) perde em densidade para as demais feitas em seguida: “a.) Que sugeriu ao ex-ministro Sergio Moro a nomeação do DPF Ramagem para a Direção-Geral; b.) que indicou o DPF Ramagem em razão da sua competência e confiança construída ao longo do trabalho de segurança pessoal do declarante durante a campanha eleitoral de 2018; c.) que ao indicar o DPF Ramagem ao ex-ministro Sergio Moro, este teria concordado com o presidente desde que ocorresse após a indicação do ex-ministro da Justiça à vaga no Supremo Tribunal Federal; d.) que conheceu o DPF Ramagem após o 1° turno quando ele assumiu a coordenação da segurança do então candidato Jair Bolsonaro; e.) que salvo engano os filhos do declarante também conheceram Ramagem somente quando ele assumiu a segurança do declarante; f.) que nunca teve como intenção, com a alteração da Direção Geral, obter informações privilegiadas de investigações sigilosas ou de interferir no trabalho de Polícia Judiciária ou obtenção diretamente de relatórios produzidos pela Polícia Federal.

g.) que o declarante quis dizer que não obtinha informações de forma ágil e eficiente dos órgãos do Poder Executivo, assim como da própria Polícia Federal; h.) que quando disse "informações" se referia a relatórios de inteligência sobre fatos que necessitava para a tomada de decisões e nunca informações sigilosas sobre investigações”.

Perceba-se o desequilíbrio nas afirmações e no paradoxo da tese: “precisa de alguém com quem tivesse interlocução para saber o que estava acontecendo, mas que isto não era interferência.”

Ele queria na PF alguém para tomar Tubaína juntos e falar de futebol. Como uma conversa do presidente com um subordinado de segundo grau (ele é subordinado ao Ministro da Justiça) iria entender as recomendações do chefe supremo?

Perdão se vejo lagarto nesta maravilhosa samambaia. Mas a minha educação crítica me leva isto.

Marcos Inhauser

A PALAVRA DA REVELAÇÃO

Só há um ser que conhece a Deus na sua plenitude: o próprio Deus. Na Índia surgiu a parábola dos cegos apalpando um elefante e cada qual dizendo como ele é. Ainda que todos tenham apalpado, tocado e intuído, nenhum deles descreveu o elefante na sua inteireza e nem mesmo tiveram uma ideia do conjunto.

A história se aplica a Deus. Temos visões e noções parciais sobre Deus, mas ninguém, nunca, O conheceu na Sua plenitude. Nossas visões de Deus são fruto da forma como o apalpamos, tocamos, sentimos, experimentamos, intuímos, mas o conjunto destas experiências não nos dá uma visão do todo e são tentativas de conhecimento.

Com certeza, há quem vá dizer: Deus se revelou a nós e nós o podemos conhecer. É verdade, mas há alguns senões a serem considerados. “O que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou” (Rm 1:19). Só conhecemos o que Ele permitiu que conhecêssemos e a revelação é uma ação da graça de Deus, porque “não há quem entenda, não há quem busque a Deus” (Rm 3:13). A revelação é a ação graça divina se dando a conhecer, se revelando parcialmente a nós.

Outro aspecto é que a revelação está intermediada. Ao tomar a Bíblia como a fonte de revelação primária sobre o que sabemos de Deus, temos uma fonte intermediada. Sabemos o que alguém diz que viu ou ouviu de Deus. Nunca temos o próprio Deus se revelando a nós e falando diretamente. Mesmo o que Jesus falou e ensinou o sabemos por que terceiras pessoas relataram o que d´Ele ouviram. Esta revelação “terceirizada” tem seus vieses e alguns deles são abordados em outros textos por mim escritos e aqui postados. Quem escreveu e reproduziu o que Jesus disse, teve as limitações que a escrita enfrenta ao tentar ser fidedigna ao que busca descrever. Tanto é assim que o sermão da montanha em Mateus difere do que Lucas apresenta, com seu conteúdo fragmentado ao longo do evangelho que escreveu. Qual dos dois é o mais fidedigno?

Certamente virão os mais afoitos perguntar: e a inspiração do Espírito Santo? Na minha experiência pastoral percebo que estes que assim argumentam, acreditam na inspiração verbal e plenária, ou no ditado mecânico: Deus foi ditando e o escritor bíblico foi escrevendo. Até as vírgulas foram inspiradas!

Esta concepção implica em algumas considerações. Se houve um ditado divino para o escritor eleito para escrever, o que se pode afirmar, em sã consciência, é que o escrito original teve esta característica. Sabe-se que deste “original” foram feitas cópias para preservar o escrito, uma vez que os materiais empregados eram facilmente deterioráveis. Assim, os manuscritos mais antigos que temos, são cópias das cópias das cópias. Sabe-se, e há inúmeros exemplos disto, que os copistas cometiam erros e que há diferenças entre os manuscritos preservados. A pergunta que se impõe: qual dos manuscritos é o “verbal e plenariamente inspirado?” Há quem afirme a inspiração plenária nas traduções. Qual das versões em português é a inspirada verbal e plenariamente?

Se a escrita foi “ditada” por Deus, qual dos relatos sobre a crucificação, onde os ladrões aparecem em Mateus, Marcos e Lucas é o verbalmente inspirado? E como avaliar a autenticidade sobre a história de Paulo logo após a conversão e sua permanência no deserto da Arábia? O relato dos Atos ou do próprio Paulo em Gálatas?

Não apresento coisa nova. Quem estuda e está aberto para ouvir “de tudo e reter o que é bom” já terá visto estes questionamentos. Com certeza haverá quem me questione e apresente os argumentos que são sobejamente conhecidos. Já os ouvi muitas vezes e cada vez que os ouço, reforçam minhas perguntas e posições aqui feitas.

Marcos Inhauser

A PALAVRA ESCRITA

A invenção da escrita surge como tentativa de dar mais vida à fala. Se o que falamos morre imediatamente após a emissão do som, a escrita, ao tentar capturar pensamentos e falas, pretende estender a vida útil de ambos. A escrita é a tentativa de dar sobrevida ao que é efêmero.

O que se escreve, no entanto, por mais bem elaborado e preciso que seja, não consegue dar aos pensamentos e falas o mesmo brilho e dinamismo. Sonhos, imaginação, pensamentos em cores. Escrevemos em preto e branco. Falamos com nuances de tonalidade, ritmo, ênfase, mas o que escrevemos é linear. Pegue-se um romance e perceba o trabalho hercúleo dos escritores em descrever os personagens que estão na sua mente. Quando eu tentava ler “Chaplin – Uma biografia definitiva”, de David Robinson, ele dava tantos detalhes sobre a casa, a escada, os móveis da casa do Chaplin, que se tornou entediante. Ele, parece, desejava que eu “entrasse no mundo de Chaplin”. Não conseguiu, ao menos comigo.

A escrita é sempre menor que o sonho, pensamento ou fatos que busca descrever. Daí o surgimento dos poemas que mão buscam ser descritivos, cartesianos mas, ao usar metáforas, nos incitam a criar nossos próprios imaginários, a nossa versão da realidade. Esta é a beleza dos Salmos: não descrevem, mas suas narrativas buscam nos fazer criar nosso mundo, entrar nos nossos sofrimentos, nos dar esperança em meio às nossas dores.

A escrita é a prova da complexidade da fala, é a fixação em regras da comunicação. Enquanto a humanidade se valeu da oralidade, as mentes estavam abertas para a recordação, para a memória. Ouviam história longas e podiam reproduzi-las. Com a escrita a memória perdeu seu espaço nos relacionamentos. Vale o que está escrito. Se não foi escrito, morreu com a fala.

Acumulamos livros em bibliotecas imensas porque perdemos a capacidade de recontar com fidelidade o que ouvimos. O paradoxo é que, hoje conhecemos muito mais histórias porque temos acesso aos livros escritos. Daí que alguém já disse que o ser humano deve ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Outro afirmou que quem nunca leu um livro nunca nasceu: é um natimorto.

Marcos Inhauser

A PALAVRA ETERNIZADA



Pensamos e falamos palavras. Os pensamentos os expressamos pela fala e esta tem duração mínima. Desde a mais remota antiguidade sentiu-se a necessidade de se dar uma vida mais longa ao que se falava. Isto era mais sentido no controle da produção e nos pagamentos e recebimentos, em função de possíveis desacordos comerciais e a necessidade de se controlar a produção para a cobrança de impostos. Houve um longo processo até que se chegasse ao que se pode dizer que tenha sido a primeira forma de escrita.

Para chegar até este ponto, a humanidade partiu de desenhos rústicos que foram ganhando certa complexidade, tal como pode ver nas antigas cavernas, que abundam em quase todas as partes. Uma pergunta que comumente se faz é porque só temos desenhos em cavernas. A resposta mais simples e óbvia é que duas condições estão presentes: a segurança para desenhar, visto estar livre dos perigos que a vida fora dela tinha; e a preservação dos desenhos porque não expostos às intempéries do clima.
Li algumas coisas sobre este proceso: Riane Eisler (O Prazer Sagrado. Ed. Rocco); Reza Aslam (Deus, uma história humana. Zahar); Domenico de Masi (Criatividade e grupos criativos. Sextante), Yuval Harari (Sapiens. L&PM Editores), Peter Burk (História da Escrita. Unesp).

Sabe-se que a primeira escrita que até hoje se conhece é a que foi encontrada em Jerusalém, e se trata de escrita cuneiforme, com datação aproximada do século XIV a.C. Trata-se de um pedaço de barro. Esta evidência histórica, em certa medida, confirma uma tese de que a primeira escrita sistematizada aparece por volta de 3500 a.C., quando os sumérios desenvolveram a escrita.

A escrita egípcia era em forma de hieróglifos e havia duas formas: a escrita hierática (em formato cursivo para fins comerciais) e a escrita demótica (mais simplificada e popular). Além destas, os egípcios usavam outros dois sistemas de escritas.

Um fragmento de cerâmica com cinco linhas de texto e mais de 3.000 anos de idade, foi descoberto onde a Bíblia diz que Davi matou Golias. Ele foi e é considerado o mais antigo registro de hebraico escrito.

Das primeiras escritas sabe-se que tinha vocabulário restrito e, no mais das vezes, relacionado às questões comerciais, exaltação de façanhas reais, alguns poucos dados históricos. O primeiro poema do mundo ainda não está definido. Há quem diga que a "Epopeia de Gilgamesh" é o texto literário mais antigo, um poema épico da antiga Mesopotâmia, composto em doze cantos com cerca de 300 versos cada um, e datado de cerca de 2100 a. C. O gênero pertence à epopeias épica, relatando as aventuras do rei Uruk.

O comércio e a exaltação das façanhas reais parecem que foram os motivos para o surgimento da escrita nas mais variadas partes. Se atentarmos para os desenhos egípcios que estão nas tumbas, perceberemos a motivação da exaltação real.

Isto me leva a uma reflexão: se a motivação primeira era exaltar os poderosos e seus feitos, seria esta a razão para que os profetas, que mostravam os podres e o lado desumano dos reis, fosse tão execrado, ao ponto de serem mortos?

Dá-me a tentação que a escrita que escreve contra poderosos é algo que não se coaduna com a história da escrita. Nem por isto deve deixar de exercer o seu papel, tanto assim que, boa parte do Antigo Testamento é composto por escritas “não-reais” e que mostravam as iniquidades praticadas pelos poderosos.

Marcos Inhauser

A PALAVRA HISTÓRICA

As considerações feita no post anterior (A PALAVRA ETERNIZADA), ensejam outras reflexões, agora no campo da historiografia e da filosofia da história. Se a escrita foi criada por razões comerciais (controle da produção para cobrança de impostos e estabelecimentos de acordos comerciais) e se também o foi para exaltação das façanhas reais, tem-se que a escrita antiga, por mais que possa ser documento valioso, precisa ser tratada com o cuidado que isto requer.

Quando a historiografia se vale de desenhos nas cavernas, hieróglifos, escritas cuneiformes, a escrita cursiva e demótica dos egípcios, há que levar-se em consideração o fato de que, em sua essência, são exercícios de poder. A escrita não era de domínio público, pois só alguns sacerdotes e membros da elite real a manejavam. Ela não era de acesso popular, seja pela dificuldade em escrever (em terracotas, pedras, papiros), seja pelo fato de que a educação era praticamente inexistente. Era algo feito para os poderosos, em benefício dos poderosos, para eternização de seus feitos e aumento do seu império.

Assim, a história que conhecemos porque nos contaram, baseada nestes escritos e nos palácios, cidades, pirâmides e tumbas que construíram, é a versão dos poderosos. Ela descreve uma visão imperial, em uma leitura de cima para baixo, onde trabalhadores, escravos, estrangeiros não eram “gente”. Entender este viés da história é fundamental para se ter uma visão crítica sobre as narrativas dos poderosos. Tomando Michel Foucault como base, a verdade é a versão do poder. O que o poder escreve ou fala, porque é poder, é verdade.

Emprestando do mestre Zé Lima, a versão dos não-poderosos é sub-versão, uma versão de segunda categoria, uma versão inferior. E esta “subversão” é “sub-versiva” porque se contrapõe à verdade oficial. Falar ou escrever desmascarando os “poderosos e suas versões oficiais” é subversivo. E os áulicos estão prontos para, como milícia do poder, atacar quem se mostra “sub-versivo”. Os poderosos não admitem que possa haver outra versão diferente daquela que ele sustenta, mesmo que seja provada como falsa ou mentirosa. Para o poderoso não há fakenews porque ele é a verdade e esta não precisa nem pode ser checada.

A história oficial é a exaltação das grandiosas obras do poderoso. Assim foi no passado, assim é no presente.

Marcos Inhauser

ESTADO ESQUIZOFRÊNICO

Não é de hoje que falo, escrevo e protesto contra o Estado brasileiro nos seus diversos níveis. Há nele um aperfeiçoamento célere quando s...