2/15/2022

ESTADO ESQUIZOFRÊNICO

Não é de hoje que falo, escrevo e protesto contra o Estado brasileiro nos seus diversos níveis. Há nele um aperfeiçoamento célere quando se trata de arrecadação. A Receita Federal, o INSS, o ICMS e o ISSQN passaram por profundas transformações no sentido de coibir as sonegações. Não sei se existe outro país no mundo onde a declaração anual do imposto de renda seja totalmente online, como é a brasileira. Lembrar que há não muito tempo ainda se fazia em papel.

As emissões de nota fiscal eletrônica são outro avanço no sentido de melhor arrecadar impostos. O cruzamento em tempo real de dados é outro elemento deste avanço tecnológico. A implementação do PIX é outra facilidade que, ao fim e ao cabo, vai permitir que a Receita tenha dados concretos de quanto recebemos e pagamos.

Nenhum outro país teve tantos radares instalados em tão pouco tempo, vigiando os condutores e punindo ao menor deslize. Dez por cento de excesso de velocidade em sessenta quilômetros por hora, e dá-lhe multa.

Mas, quando se trata de devolver ao cidadão o serviço que o Estado por lei e Constituição é obrigado a dar, aí são outros quinhentos. Nem vou falar de segurança, saúde e educação, para não cair nos clichês. Falo de serviços cobrados e mínimos, como um alvará de funcionamento, uma certidão negativa de multa, um parcelamento de débito, aprovação de uma planta, reconsideração de cálculo de IPTU, lançamentos equivocados, etc.

Quem nunca se irritou com a demora em ser atendido num posto da Receita Federal, INSS, Prefeitura ou outro órgão qualquer? Quem nunca se intrigou com os movimentos modorrentos de funcionários públicos, que se arrastam para fazer aquilo para que são pagos?

O aperfeiçoamento da máquina veio na ponta da arrecadação. A se considerar os inúmeros casos de escândalo e propinas e licitações dirigidas, parece que houve incremente tecnológico na ponta da evasão via corrupção, vide os casos não julgados de corrupção. A Receita, o ICMS, o ISSQN e os radares foram aperfeiçoados e a informática mal chega capengamente ao judiciário, que, em tese, beneficiaria o cidadão. Ocorre que mais de 50% dos recursos são feitos pelos diversos órgãos da administração pública e não interessa a eles que estes processos sejam julgados. E há que se recordar que um sem-fim de pessoas foram beneficiados com a prescrição da pena via lentidão da justiça

Vendo isto eu me lembro do Valdir, um caboclo que me disse uma vez: “a porta do chiqueiro é bonita, mas lá dentro é muita lama prá um chiqueiro tão pequeno”.

Marcos Inhauser

 

MAMADEIRA DE JILÓ

Não sei se é sinal dos tempos ou de minha caminhada à velhice. Tenho me impressionado com o número de pessoas azedas que encontro por todo canto. Elas reclamam de tudo e de todos.

Por outro lado, estou em um dilema: ser crítico e não se acomodar com as coisas é ser azedo? Seria condição para ser jornalista, comentarista político ou colunista o ter tomado mamadeira de jiló na infância? Ou é dom divino ser Polyana, a que via tudo cor-de-rosa, tudo maravilhoso? Quem está certo: o ufanista com o bordão “estou convencido de que, nunca na história deste país”, ou a do crítico a destilar fel e ironias todos os dias? Ou estaria melhor o Macaco Simão ao fazer troça de tudo e todos e levar a vida com colírio alucinógeno?

Neste caminhar de dúvidas, me veio à mente a história bíblica dos murmuradores que, tendo saído da escravidão egípcia, encontravam-se no deserto e reclamavam de tudo. Ora a comida, ora água, depois os dirigentes, ou o sol escaldante, ou o frio noturno. A figura dos murmuradores são típicas de quem tomou mamadeira de jiló na infância. Nada os satisfaz, sempre tem algo a dizer que está faltando, etc. Uma coisa interessante na história bíblica é que os murmuradores nunca entraram na terra prometida. Isto acontece até hoje: quem murmura, quem é poço de azedume, sempre estará atento aos detalhes da imperfeição e nunca aprenderá a desfrutar da beleza do que existe e é possível. Murmuradores não desfrutam de mel e leite porque tomaram gosto pelo jiló das mamadeiras. E como diz o ditado, “há quem goste dos olhos e quem da remela”. Murmuradores deixam de desfrutar dos olhos lindos para buscar a remela.

Na outra ponta está a Polyana, cega aos detalhes, às implicações mais abrangentes dos atos e fatos. Veem marolinhas, quando deveriam se preparar para tsunami. Incentivam a compra quando o mundo pede cautela nos gastos. Mantem os juros altos e culpa o mundo. Aumentam os gastos públicos quando a prudência e a sabedoria exigem cortes. Terceirizam a culpa de todos os erros que cometem. Inconstantes, mudam de opinião a cada hora.

Entre os dois pólos há quem se orgulhe do espírito do brasileiro que faz piada de tudo. É a natureza “macacosimoniana” de esculhambar, como forma de não encarar, de não enfrentar. Sátiras, ironias, trocadilhos para tudo e todos. São os memes a fazer piada de tudo e de todos, umas inteligentes, outras de gosto duvidoso, outras de humor duvidoso. O humor tanto pode revelar a criatividade e inteligência como a imbecilidade.

Aprendi que há algumas variações nos discursos. O descritivo se limita a descrever as coisas como são, a partir da ótica do autor, considerando que a análise purista é quimera dos “imparciais” e fundamentalistas. Há o investigativo, que explicita as coisas que extraídas a partir das muitas perguntas feitas e conclusões tiradas pelo investigador, que devem, sempre ser avaliadas à luz da coerência e lógica interna. Há o prescritivo, quando o autor orienta os leitores nas condutas que devem adotar a partir das afirmações que faz. Há o negacionista quem, cego às informações oriundas das mais diversas fontes confiáveis, prefere suas convicções pessoais, quase sempre baseadas nas leituras que fez durante o curso básico, no astrólogo que virou filósofo autodidata e assessores tão bem-educados quanto ele.

Cada qual tem um preço a pagar pelo que escreve e afirma. Uns recebem créditos e elogios, outros críticas e ainda outros são motivo de gozação dada às besteiras constantes que profere. O pior é o que tomou mamadeira de jiló com veneno e seu discurso é para promover a morte.

Marcos Inhauser

 

ELES NÃO CONSEGUEM SER BENÇÃO

Estava tomando um café, em visita a meus pais. A certa altura perguntei:

Pai, o senhor tem notícias do Fulano e da Beltrana?

— Há tempos que não ligam. Eles só ligam quando estão precisando de algo ou para reclamar dos parentes. Eles não conseguem ser uma benção! Nunca estão quando se precisa deles!

Tive um funcionário em um local onde trabalhei que tinha o dom da ausência. Muito gentil, muito prestativo, mas nunca estava por perto quando dele se precisava. Quando aparecia, depois de algum tempo, perguntava: “precisou de mim?”

Há algum tempo estive conversando com uma mulher de seus 40 e poucos anos, que passou por uma cirurgia delicada, de difícil e demorada recuperação. O pessoal da igreja fez uma escala de pessoas voluntárias dispostas a passar as tardes com ela, para atendê-la se tivesse alguma necessidade. Ela me contou da alegria em saber que estavam cuidando dela e se prontificando a ajudá-la a passar pelos difíceis momentos.

— Mas teve quem, ao invés de ajudar, foi um peso. Teve quem veio e começou a contar dos sacrifícios que teve que fazer para arrumar uma tarde livre para estar comigo. Outra me usou para falar mal da sogra, do marido, da mãe, do pai. Houve quem gastou seu tempo para contar das doenças que tinha e que já teve, como se isto lhe desse algum alívio. Há quem não entendeu que eu precisava descansar e dormir. Não deixavam, falando o tempo todo! Não foram benção, antes cruz!

— Das que vieram quais foram benção?

— Dada minha situação, as que vieram e disseram: vou estar sentada aqui, ou ali fora. Se precisar me chame. Houve uma que trouxe uma pequena campainha de cristal e me pediu que a tocasse se precisasse, porque ela sabia que falar em voz alta era problema para mim. Houve quem veio, orou ao chegar e ao sair. Não disse nada e nem precisei dela. Mas saber que estava ali, em silêncio, foi como se a graça de Deus estivesse no meu quarto!

Você deve conhecer alguém que quando liga ou visita é mensageira da desgraça: tá devendo no cartão, no banco, brigou com o marido, o filho casado não liga mais para ela, o carro bateu, tem goteira no telhado, comprou um liquidificador pela internet e veio com defeito e está há um mês tentando que deem outro, etc. Nunca trazem a solução para algum problema, sempre só o problema. Se você se arrisca a dizer que poderia ser feito isto ou aquilo, ela vai responder: “isto não dá certo”, “é muito trabalho”, “tem que levar no correio e é uma canseira”.

Neste universo das pessoas que não conseguem ser benção, estão os folgados e espaçosos. Eles se acham no direito de usar e abusar da vida e dos bens dos outros. Meu pai tinha um amigo açougueiro que comprou uma chácara, com piscina. Todo santo final de semana a família toda ia para lá, comia e bebia às custas do proprietário. Ele queria vender a chácara para não ter que aguentar mais os familiares folgados, que também se deram licença para trazer amigos.

Meu pai disse:

— Se fosse eu, eu fechava a chácara alguns finais de semana seguido, sem avisar nada para ninguém. Eles vão para lá e darão com a porta na cara.

O proprietário fez isto. Na segunda, na parte da manhã já teve “parente” ligando e reclamando que a chácara estava fechada e que ele tinha sido mal-educado e nem tinha avisado. A chácara ficou uns quatro finais de semana fechada. Quando ele voltou com a esposa e filhos em um final de semana. Ficaram sozinhos e desfrutaram. Não demorou muito para que reclamassem que ele não avisou que estava indo, que não era justo eles não poderem desfrutar da chácara, que era egoísta.

Estes nunca conseguem ser benção. São parasitas!

Marcos Inhauser

ELAS FORAM BENÇÃO!

Dona Elpídia: eu a conheci na Igreja Presbiteriana de Jaú. Já idosa, com ela fui visitar vários membros da igreja. Ela tinha o dom do serviço. A cada casa que visitávamos (quase sempre de alguém com problemas de saúde), ao invés de ficar na sala, ela ia para a cozinha e tentava descobrir algo em que pudesse prestar seu serviço. Ora era uma louça que lava, outra uma roupa que estava no tanque, ou o café que fazia para que a visitada não se preocupasse com este pormenor da educação.

Seu Pedro: eleito diácono da Igreja Presbiteriana de São Carlos, era prestativo em tudo quanto lhe fosse pedido. Tanto que a Igreja deu a ele um salário para ser diácono de tempo integral. Ele ia trocar lâmpada na casa de senhoras idosas, consertar ferro elétrico, chuveiro, liquidificador ou outro eletrodoméstico que estivesse ao seu alcance.

Lauro: da então Congregação Presbiteriana de Barra Bonita, foi amigo em todas as horas. Sempre preocupado em servir e pensar no próximo, morreu em um acidente de ônibus quando, para que atendessem a uma jovem que também estava no ônibus, pediu que a atendessem em seu lugar. Ele não resistiu.

Dona Blandina: da Igreja Presbiteriana da Vila Espanhola, SP, vivia em uma casa que pertencia à Santa Casa por não ter condições de pagar aluguel. Sempre tinha um sorriso e um cafezinho quando a visitava. Quando soube que minha esposa era pianista e que ela não tinha um piano, acionou uma sua conhecida, XXX, que ofertou o dinheiro para que comprássemos um usado.

Mãe Isolina: da Igreja Presbiteriana Ebenézer, SP, que me acolheu quando me converti, abriu sua casa e todos os domingos me levava para almoçar, por saber que não teria almoço, o que só socorria nos dias de semana, no trabalho. Foi madrinha no meu casamento. Passei a chamá-la de mãe e meus filhos de vovó. Foi um esteio para nós no início do ministério pastoral.

Irene: da Congregação Presbiteriana de Barra Bonita, quem cedeu sua empregada por alguns meses, quando nasceu a nossa terceira filha. Para nos ajudar e porque tinha fazenda, todos os dias trazia um latão de leite fresco.

Dona Sebastiana: da Igreja Presbiteriana de São Carlos, com sérias dificuldades para andar e se dispôs a ter um telefone na cabeceira da cama e orar por quem ligasse e pedisse oração. Fez disto um ministério que a tornou conhecida na cidade e muitos passaram a frequentar a Igreja porque vieram para conhecer a Dona Sebastiana.

Vó Olga: extremamente dedicada aos netos, mudou-se para viver com alguns deles enquanto cursaram faculdade. Queria que tivessem todo o cuidado e comida caseira. Adotou meus filhos como seus netos e tinha habilidade de fazer com que comessem de tudo e tudo o que se colocasse no prato.

Marcos Inhauser

 

ELE FOI BENÇÃO

A Covid o levou antes da hora!

Morador de Rio Verde, foi membro da igreja que a Irmandade lá mantinha. Foram uns 25 anos de amizade. Quando para lá viajava, a primeira coisa que fazia era ir ver o Roberto Ferrante. Ele tinha um negócio de fazer placas, adesivos, crachás e correlatos. Sempre lutou com muita dificuldade para ganhar o que era necessário para fazer frente às despesas básicas da família.

Quando eu perguntava como estavam as coisas, ele sempre me dizia que estava difícil, mas que as coisas estavam indo e, sem reclamar, me contava de alguns percalços para receber da Prefeitura ou de algum cliente.

Muito bem relacionado na cidade foi meu braço direito para resolver os inúmeros problemas que tive em Rio Verde, tanto com os cartórios, como com os imóveis. A cada pouco tinha que ligar para ele e pedir que me ajudasse desvencilhando este ou aquele nó, fosse na Prefeitura, na companhia de água e esgoto, na companhia de eletricidade, em um dos cartórios, na conservação dos imóveis, no contato com o advogado. O que me chamava a atenção é que sempre estava disposto, nunca me disse não e nunca deixou de fazer, e resolver, o que lhe havia pedido.

Muitas vezes fiquei, cá com meus botões, pensando na diferença do Roberto para outras pessoas a quem também tive que pedir que me ajudasse em alguma providência. Muitas vezes dei com a cara na porta, ouvindo desculpas esfarrapadas para não atender ao que pedia. Outras, no que pese afirmarem que fariam, estou até hoje esperando a solução do que lhes foi pedido. Algumas vieram se desculpar, outras nunca se dignaram a dar uma explicação.

Com o Roberto isto nunca aconteceu. Se eu pedisse, no máximo ele me diria: “tenho um trabalho hoje, mas amanhã vejo isto.” E via. E solucionava! Nunca ouvi o Ferrante reclamar de algo que tinha que fazer ou dos problemas que tinha: ele resolvia!

Muitas vezes fui com ele a alguma repartição e, quando menos assustava, cadê o Ferrante? Depois de uns minutos ele voltava e me dizia: “vem comigo!”. E já tinha contatado alguém que poderia nos ajudar a solucionar o problema. Tinha amigos por toda a parte e, sempre sorrindo, abria portas inimagináveis.

O Ferrante era uma benção sem precisar se esforçar para sê-lo. Ele faz falta e muita falta. Foi levado pela Covid antes da hora!

Marcos Inhauser

 

ELAS SEMPRE SÃO BENÇÃO

Muitas vezes li, refleti e escutei sermões sobre o texto de Gn 12:2 “Sê tu uma benção”. Sempre me encuquei com este texto, não conseguindo definir se se trata de uma ordem dada para que Abraão fosse uma benção ou se se trata de uma ação de Deus na vida de Abraão: serás uma benção. Se o primeiro caso é o que está no texto, trata-se de uma volição, uma decisão de ser benção. Se se trata da segunda possibilidade, é um ato da graça de Deus: serás uma benção independentemente da vontade de querer ser ou não.

No campo dos pregadores da teologia sinérgica onde Deus e o homem cooperam para que as coisas aconteçam, se coloca um peso enorme nas costas da pessoa, obrigando-a a ser benção. Se, de outro lado, é ação da graça, o ser benção é natural e espontâneo.

Confesso que, até hoje, estou na indecisão. Conheço gente que decidiu fazer da sua vida uma fonte de benção para os demais. Eles se dedicaram a um ministério, a um compromisso, a ajudar setores específicos e, por assim terem decidido, se tornaram uma benção na vida das pessoas beneficiadas. Foram atos pequenos e grandes.

Lembro-me do meu tio Nicolau. Na igreja de Indaiatuba havia um senhor, o Eduardo Volpi, quase cego, aparentemente com alguma limitação mental. Ele era ativo na igreja e no coral. Morava nos fundos da igreja e tinha uma carrocinha puxada a mão e fazia serviços de entrega de compras ou transporte de pequenos móveis. Não sabia e não podia ler. Meu tio, toda semana, ia ao seu quarto e lia para ele a lição da Escola Dominical do próximo domingo e explicava algumas coisas sobre a lição. Assim fez por mais de 30 anos, infalivelmente. Meu tio era tímido (nunca namorou por causa desta timidez), não tinha grandes habilidades, mas no que sabia fazer, fez e foi benção.

Conheci a Dona Maria Avelar, membro de uma igreja que pastoreei. Ela era benção sem precisar fazer força. Sua presença, seu sorriso, carinho, cuidado eram abençoadores. Seu marido que se negava a ser dizimista e ela decidiu trabalhar “costurando para fora”. Assim ganhava algo que era para dar o dízimo que o marido se negava a dar. Muitas vezes ela veio até mim (pastor da igreja, com dois filhos pequenos) e colocava no bolso algo e me dizia: “é para comprar café”, “é para comprar a papinha dos nenês”, etc. Ela sempre destinava a sua oferta e o que me chamava a atenção era que parece que ela ia à minha casa para saber qual era a necessidade. Ela era uma benção sem fazer força.

Minha sogra, Salime, era uma destas que não fazia força para ser benção. Nunca uma pessoa bateu à sua porta pedindo algo que tivesse saído sem levar um prato de comida, umas frutas, um doce que fazia. Não dava dinheiro, mas dava do seu trabalho e do que tinha em casa. Ela era benção sem fazer esforço.

Um exemplo de ser benção por determinação e outro por vocação. Acredito que ser benção por decisão e ser por ação da graça são atos que não se excluem. Se decido que vou ser benção, a graça foi que mel levou a esta decisão e me capacita para ser benção na vida do próximo.

De minha parte, peço a Deus sabedoria para ser benção na vida de pessoas com as quais me relaciono. Muitas vezes fico na dúvida se Deus tem respondido a esta minha oração. É um ato de vontade que, tenho certeza, dependo da graça para poder realizar o que me propus. E se, pela graça, alguma vez sou benção, parece que Deus não me deixa saber para não me orgulhar.

Marcos Inhauser

 

TIO MOIMANDO

Lá se vão quarenta e dois anos.

Saí de Barra Bonita de mudança para São Carlos. Três filhos pequenos (5, 3 e 1 ano), uma nova igreja, desafios incontáveis. Na saída, alguém me disse que em São Carlos havia um pediatra cristão que eu deveria procurar se precisasse de algo para as crianças (uma certeza inquestionável).

Descemos a mudança do caminhão, mal nos acomodamos e, exaustos, caímos no colchão que estava no chão. No outro dia acordei me sentindo mal. Não conseguia me levantar, tudo rodava, uma impotência frustrante. Tanta coisa por fazer e sem conseguir levantar a cabeça do travesseiro!

Pedi à esposa que ligasse para o médico recomendado e ele não retornou a ligação. Passei três dias de molho, sem poder ajudar em nada, com três pequenos bagunçando até não mais poder, porque tudo estava ao alcance das mãos deles. Foi uma tortura ficar deitado com tanta coisa por fazer. Três dias depois me senti melhor e voltei à carga.

Mais tarde, como era de se esperar, tivemos problemas de saúde com um dos filhos e lá fomos ao consultório do pediatra recomendado, o mesmo que eu tinha agora reservas porque nem bola deu para meu mal-estar. Tinha certeza de que encontraria um médico burocrático, chato e ranzinza. Para surpresa minha, ele foi simpático, atencioso e cuidadoso.

Mais vezes precisamos dele para o cuidado das crianças. Sempre com a mesma generosidade, gentileza, carinho e cuidado. Acabamos nos tornando grandes amigos, e ele nos introduziu à sua família, e nossos se tornaram amigos. Porque ambos somos corintianos, fomos ao Morumbi na Veraneio que ele tinha, para assistir a um jogo do Corinthians com o Atlético de Minas. Éramos nove: o pai e seus quatro filhos, eu e meus três filhos. Foi uma aventura e uma festa. O Corinthians ganhou um jogo decisivo e emblemático, até hoje relembrado por todos os que participamos.

Certa feita, em uma conversa mais intimista, contei a ele que tive péssima impressão dele quando acabara de chegar a São Carlos. Ele me disse com suas costumeiras poucas palavras: “Eu sabia que você estava estressado e que precisava de uns dias de repouso. Eu não podia fazer nada! Tanto é verdade que depois de três dias você melhorou!”

Meus filhos tinham por ele uma verdadeira adoração e o chamavam de Tio Moimando (porque não conseguiam pronunciar seu nome por inteiro e corretamente). Tal o respeito, admiração e confiança que, depois de casadas, minhas filhas ligaram para ele (uma vez da China) para pedir a ele conselhos sobre os cuidados com os filhos.

Pediatra, ele foi meu médico. Por duas vezes fui salvo por ele. Na primeira, eu tinha uma biópsia que dava um diagnóstico preocupante. Procurei outro médico, iridologista, que me disse que não tinha nada do que a biópsia dizia. Entre um laudo de laboratório e um iridologista, deveria ter ficado com o laudo. Mas estava na dúvida. Procurei o médico amigo, expliquei a ele e ele me encaminhou para um médico especialista em Bauru. Quando cheguei e indiquei que havia sido indicado pelo Dr. Normando, as portas se abriram, tal era o respeito e carinho que o médico procurado tinha por ele.

Doutra feita, depois de uma cirurgia que retirou alguns centímetros de meu intestino, tive complicações, com febre, falta de ar e dificuldade de falar. Um primo, muito amigo, me ligou para saber como eu estava. Ele me alertou que deveria procurar ajuda médica urgente. Liguei para o Normando. Ele me pediu que buscasse o médico que me deu o nome, informando-me que não tinha o telefone e que era difícil arrumar uma consulta com ele. Ele me disse que dissesse a ele um apelido que era como ele o chamava. Não liguei. Fui direto ao consultório. Lá chegando, a secretária me disse que ele não tinha agenda nos próximos quatro meses. Perguntei: “e se for consulta paga?”. “Dá no mesmo”, me respondeu. Olhei nos olhos dela e disse; “vai lá dentro e fala para ele que quem o chama de (um apelido que não me recordo) foi quem me pediu que o procurasse.

Ele veio ao meu encontro, acreditando que era o próprio Normando quem ali estava. Expliquei a ele o que aconteceu, me consultou e me internou em urgência na Unicamp. Minha vida estava em risco.

Conto estas coisas para ressaltar três coisas. Primeira: nem sempre a primeira impressão é a verdadeira. Segunda: relações de amizade honestas sobrevivem ao tempo e isto porque ambos os amigos se respeitam, apesar das diferenças de opinião que possam ter. Terceira: As amizades são tanto mais duradouras quanto mais benéficas elas são para ambos. Quarta: a estabilidade e longevidade das amizades nos trazem felicidade à vida, porque sabemos que somos amados, respeitados e que podemos contar com elas quando precisarmos. Assim foi com os médicos em Bauru e Campinas que o Normando me indicou. Quinta: a amizade verdadeira não precisa de contatos constantes, de elogios mútuos, de explicações e avaliações. Ela existe e resiste ao tempo, aos silêncios e às diferenças. Ela é o lenitivo para os azedumes da vida.

De minha parte, minha gratidão e respeito pelo pediatra, médico e amigo que o Normando sempre foi e continua sendo.

Marcos Inhauser

ESPERANÇA SOLIDÁRIA

Se há uma coisa que todos temos na virada deste ano é a esperança. Depois de um ano cheio de sobressaltos e apertos, muita gente querida morrendo, nada mais lógico e natural que querer de que este novo ano nos dê a esperança de que será melhor. No entanto, a esperança é subversiva. Ela faz uma crítica ao presente e pensa o amanhã diferente. Ao questionar o presente, os que dele tiram seu proveito, especialmente pelas vias escusas da propina e corrupção, se sentem ameaçados. Usam dos meios que dispõem para preservar o status quo, seja promulgando leis que só atendem aos seus interesses ou prolatando sentenças monocromáticas que permitem a um preso sair da cadeia para viver como se nada tivesse acontecido. São as anulações de sentenças, mesmo as julgadas por um coletivo de juízes que colocam ‘provas duramente conseguidas como se lixo fossem.

Se a sociedade permanece alienada e não reage a estas situações, por melhores e mais bem fundadas que sejam suas esperanças, elas se tornarão em desesperança a curto prazo. Para que a esperança prospere, temos que levar em conta que os atos de esperança não estão fundados na análise dos passos pretéritos, no que fiz ou fizemos ontem. O que move para a concretização é a visão do futuro, que gera a dinâmica de atuação no presente. É a u-topós que se busca, no melhor sentido do ainda-não-dado, a utopia.

Por paradoxal que possa parecer, são os que mais sentiram a desesperança os que têm maior força e vitalidade na construção da esperança. Ela não é construída pelos que estão acomodados com o presente, pelos conservadores, pelos abonados ou alienados. Só os que sentiram na carne a fome, a injustiça, a opressão, a malandragem, a extorsão, podem dar musculatura e ossos à esperança. O conservadorismo não tem esperança porque é o amanhã e só quer preservar o hoje. Estão contentes com o que têm, mas os desesperançados não querem continuar a viver nesta condição. Daí a semente da esperança e da u-topia.

A esperança nasce do discurso que contagia. Não pode ser solitária, mas coletiva e a transformação do solitário em coletivo se dá pela pregação do sonho. Só sonhamos o amanhã quando, ao trocar ideias sobre o presente e analisar em conjunto, em um processo de hermenêutica comunitária do presente, nos damos conta do que precisa ser mudado e o amanhã sonhado e construído. Esperança solitária é planta que nasce e morre com o primeiro sol. A esperança solidária é árvore que sobrevive às intempéries.

A esperança solidária é dinâmica na medida em que é processual, porque é construída na caminhada. Uma esperança rígida nos seus detalhes é suicida. Talvez este tenha sido o erro de Marx e muitos marxistas. O futuro tinha que ser só do jeito que sonharam.

Um dos problemas com os cristãos conservadores e fundamentalistas é que eles têm sua esperança engessada: sabem com detalhes como será o amanhã, se há tribulação antes, no meio ou depois, se vão viver no céu ou na Jerusalém celestial, se vão reconhecer amigos na eternidade, se vão cantar hinos ou morar em palacetes. A esperança de muitos é “sair-deste-mundo”, mas se esquecem que o mandato de Jesus é “ir-ao-mundo” para ser sal da terra e luz do mundo. Na oração do Pai Nosso nos ensinou a pedir “venha o Teu reino”, mas muitos oram “leva-me para o Teu Reino”.

Como cristãos vivemos entre-mundos: o paraíso perdido e a morada futura. Somos peregrinos no presente, esperamos o amanhã da manifestação plena do Reino. Voltar ao passado é suicídio, porque impossível. Viver “ad eternum” no presente é suicídio porque opressivo e injusto. Sonhar e construir o futuro, mudando hoje a mim e ao meu entorno é vida. Não haverá amanhã se todos os dias continuo igual.

Marcos Inhauser

UM DIA IGUAL AO OUTROS?

Uma coisa sempre me inquietou e me fez pensar: qual a diferença entre o 31 de dezembro e outro dia qualquer? Há algo realmente diferente na passagem de 31 para o dia primeiro de janeiro?

Se se aplica uma lógica cartesiana, conclui-se que nada existe que justifique que a passagem de ano seja encarada de forma diferente. É uma passagem igual às outras 364 noites do ano. No entanto, se se olha para o lado humano e psicológico da coisa, percebe-se que há algo a ser considerado. Quando se olha para as religiões da antiguidade, especialmente as que estavam voltadas para os deuses agrários, percebe-se que há nelas uma celebração do início de um novo ciclo, marcado pelo rito e ritmo das semeaduras e colheitas. Talvez tenha sido esta ciclicidade do sistema agrário que levou a muitos povos da antiguidade a ter uma concepção também cíclica da história, acreditando no eterno retorno.

Se se olha para a religião hebraica, percebe-se que a ciclicidade também está presente e até mesmo em ciclos menores. Foram eles que estabeleceram o ciclo da semana, quando, em um curto período de tempo, se recomeça a vida. Também contavam os anos e a cada ano os ritos ajudavam a perceber o desenvolvimento do tempo, todo ele relacionado à vida agrária e pastoril do povo.

O que seria de nós se não houvesse o sábado, o domingo e a segunda-feira? O que seria de nós se não houvesse o primeiro de janeiro, de fevereiro, de março, e assim sucessivamente? O que seria de nós se não houvesse o primeiro de janeiro? Como poderíamos esperar que coisas melhores pudessem acontecer se não tivéssemos a oportunidade de sepultar o velho e esperar pelo novo?

A vida sem segundas-feiras, sem os primeiros dias de cada mês e sem o primeiro de janeiro seria monótona, cansativa, depressiva. Onde arrumaríamos esperança de um novo começo? Onde acreditaríamos que coisas novas estão por vir?

O novo é o lugar da esperança. Não há esperança no que se conhece, no que se vive, no que se sabe. É o novo que traz consigo o sonho, a esperança, a energia para sair à frente. Somos seres em caminhada. Estamos sempre saindo do conhecido para o novo. O novo nos fascina, nos instiga, nos deixa cheio de curiosidades.

Não é para menos que o evangelho é “boas novas” e que a promessa é de “novos céus e nova terra”. Os cristãos são chamados de peregrinos, porque aspiram a pátria celestial, a novidade ainda não vivida. A fé não é vivida na sua plenitude quando se para no caminho. A Moisés Deus disse: “Diga ao povo que marche”. A Abraão ordenou: “Sai da tua terra e da tua parentela e vai para terra que Eu te mostrarei”. A vida cristã e a vida plena se fazem na caminhada, na descoberta do novo, na eterna insatisfação com o presente. Não há lugar para o conservadorismo. Não há lugar para quem coloca uma realidade passada no freezer e queira que sempre esteja do mesmo jeito. Fé é movimento em direção à promessa de novos céus e nova terra.

Por isto não consigo entender por que tantos cristãos, católicos ou evangélicos, se apegam ao conhecido, se tornam extremamente conservadores, repetem ad nauseam as mesmas frases, os mesmos jargões. Quero novos tempos: nem preservação do presente, nem retorno ao passado. Quero a novidade do Reino se manifestando entre nós.

Porque o conservadorismo grassa no meio religioso, não é para menos que muitas igrejas são verdadeiros jardins de infância espiritual e muitos crentes são autênticos bonsai: nunca crescem!

Marcos Inhauser

MAGIA

O tema não é novo e já o abordei outras vezes, ao longo destes anos que escrevo com regularidade. Trata-se da expectativa generalizada que se cria no final de ano de que, à meia noite do dia 31 e zero hora do dia 1º. as coisas mudam e para melhor.

Nada contra a renovação das esperanças, coisa salutar e necessária para vencer barreiras e obstáculos. O que me angustia e até me irrita e ver a quantidade de atitudes mágicas que se assomam, produzindo comportamentos os mais esdrúxulos. Uma comentarista de renome, filha de família de educadores e pastores, comentou na rádio que ela se veste de branco na passagem de ano porque isto lhe dá sorte. A outra respondia que vestiria verde porque necessita de esperança.

Isto me faz recordar a mãe de amigos que tive na adolescência que, em pleno baile de réveillon. Mal-dadas as badaladas da meia noite, saía ela com uma marmita de lentilha a nos obrigava a comer, porque isto nos daria prosperidade no ano entrante. Pelo tanto de lentilha que comi deste jeito, deveria estar milionário. Mas qual o quê. O gerente do banco anda querendo saber quanto ganho para ver coloco algum nas carteiras de investimento que têm.

Já estive na praia várias vezes na passagem de ano e não vi nada mais antiecológico que o que se faz nas areias durante o réveillon. Velas, taças quebradas, toneladas de flores lançadas ao mar, rojão de todo o tipo soltando fumaça até não se poder mais ver os fogos de artifício, gente bêbada. Tudo em nome de uma felicidade buscada na virada do ano.

Outra coisa que me irrita é que todo o ano é a mesma coisa: uma sucessão infindável de restrospectivas. Na televisão, na rádio, nas revistas, nos jornais. Parece que o mundo para, que se congelam os acontecimentos e todo mundo fica olhando e revendo o que passou. Mais que isto, a Globo, em um arroubo de criatividade, há mais de duas décadas coloca o mesmo cantor cantando as mesmas músicas que ouço desde a adolescência. Videotape!

Ainda tem os numerólogos, tarólogos, horoscopistas, astrólogos e tantos outros que a si mesmos se chamam de “videntes”, que são chamados para predizer o que será. Como ninguém tem como conferir e cobrar deles a veracidade ou chute de suas previsões, ano após ano eles desfilam o rosário de suas predições. Já disseram que o Brasil seria Hexacampeão mundial de futebol, que este ou aquele seria eleito, que tal fulano ou fulana chegaria ao topo da carreira. Há certas previsões que nem preciso ser vidente para fazê-las: vamos ter um incremento de sarampo e poliomielite por falta de vacinação adequada, que as contas do governo vão estourar em 2020, que vamos continuar ouvindo negacionismos apesar da ciência, que a esquerda vai ter um rebote mais por incompetência da Direita (o primeiro sinal é o Chile).

Creio, ensino e faço a avaliação dos meus atos a cada período e fim de ano é um deles. Creio, ensino e renovo minhas esperanças, mesmo nas passagens de ano. Mas daí achar que as coisas vão acontecer milagrosamente, é uma distância enorme. Quem quiser crer na magia, que o creia. Eu prefiro crer no suor, na transpiração, no comprometimento, na sensatez, na ciência. Creio na graça e na benção de Deus. Creio no Salmo quando diz: o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã. Estamos chorando seiscentos e cinquenta mil mortes e as perdas pelas chuvas. Creio no arco-íris que aparece depois da tempestade e na alegria de um novo dia!

Se isto é ser rabugento, meus críticos tem razão e alguns escrevem amis do que eu para me criticar no que posto.

Marcos Inhauser

 

REVEILLONS DA VIDA

Na minha infância era sagrado: na virada do ano ia para a igreja assistir ao culto de vigília. Não entendia direito o que acontecia, mas me lembro que era uma sensação gostosa o poder ficar até tarde acordado e depois as pessoas se cumprimentavam e se abraçavam.

Na primeira fase da adolescência fui morar na América Central, em El Salvador. Uma decepção. Não havia culto de vigília, poucos fogos, nenhum baile.

Na segunda fase, uma nova experiência: os bailes de reveillon. Era uma festa para a qual a gente se preparava com antecedência; guardar dinheiro para comprar a mesa, escolher o clube onde se passaria o reveillon, os companheiros e as paqueras.

Desta época me lembro da “Baixinha”, mãe do Kico, da Cuca e do Nei, e de tantos outros que havia colocado no meu círculo íntimo de amizades. Ela fazia questão de levar para o baile uma travessa com lentilha e servia para todos nós uma colherada do seu prato, dizendo que era para dar sorte. Era uma festa: em meio ao baile e no meio do salão, lá estávamos nós comendo lentilha!

Mais tarde, como pastor de igreja, voltei à prática dos cultos de vigília, dos quais participava, agora mais por força da tradição e da função que por convicção. Achava que toda a festa ao redor da passagem de ano tinha algo de místico, um resquício dos cultos agrários da antiguidade, um quê de mágico, como se de um dia para outro todas as coisas se renovassem.

Mais tarde fui morar no Equador. Uma nova experiência, talvez a mais gostosa de todas elas: as famílias fazem bonecos com roupas velhas, o caracterizam como querem e muitos o fazem como políticos, colocam o boneco de manhã na frente da casa e as crianças começam a cobrar pedágio de quem passa, pedindo dinheiro para enterrar o velho (o ano que está morrendo). À meia-noite é a festa: com fogos e muitos gritos de festa, os bonecos são queimados. No dia seguinte, com o dinheiro arrecadado, as crianças saem para tomar sorvete, comer um sanduíche ou pizza. Foram quatro anos deliciosos.

A próxima etapa foi os Estados Unidos. Uma decepção. No primeiro reveillon que lá passamos, fomos à casa de uma família amiga que nos havia convidado. Às dez da noite fomos dormir, como se nada de diferente estivesse acontecendo. Nossa filha mais velha que estava em outra casa, também teve a mesma experiência. No próximo ano, preferimos ficar entre nós para ver se acontecia algo. Não aconteceu nada, porque não havia ninguém à nossa volta que tivesse a tradição de comemorar ou festejar a data.

Mais tarde eu estava na China. Com exceção de alguns estrangeiros, ninguém mais celebrava o reveillon por aqui. O calendário chinês prevê o início do ano em outra data (em fevereiro). Aí, então, se celebra o novo ano durante uma semana com as mais variadas festas e comidas, e com os mais novos celebrando o respeito pelos mais velhos.

Várias formas de se celebrar o fim de um ano e o início de outro. Faz parte do ser humano a necessidade psicológica de achar que de tempos em tempos as coisas ficam para trás e que as esperanças se renovam. Nos cultos agrários até os deuses morriam no último dia do ano e renasciam revigorados no primeiro dia do novo ano. Necessitamos da esperança de que as coisas velhas passem e que tudo se faça novo. Para os cristãos isto é especialmente verdadeiro em Cristo Jesus.

Necessitamos de esperança em meio às tragédias que vivemos: pandemia agravada pela incúria governamental, chuvas agravadas pelas disputas políticas (o governo da Bahia é do PT e não querem levantar a bola para ele), o de Minas é mais bem relacionado com o governo central. Se é verdade que as chuvas estão se movendo e atingirão o estado de São Paulo, com certeza, a ajuda federal será escassa. A vacinação infantil entrou em estado de colapso com exigências novas e sem pé nem cabeça.

Há que celebrar neste final de ano?

Marcos Inhauser

 

A BENÇÃO DE RECOMEÇAR

Escrevi certa feita que deve ser chato ser Deus porque nada é novo ou diferente para Ele, nada pode maravilhá-Lo. Ele sabe de tudo, criou tudo.

Mas há outro elemento que tem me inquietado nestes dias de final de ano. Deus, porque é Deus, não pode nem pôde nunca recomeçar algo. Ele faz tudo tão certo que não há necessidade de refazer. Ele não precisa aprender com os erros porque, segundo definição, é impossível que Ele erre.

Fiquei me imaginando no lugar de Deus e não posso dizer que gostei. Uma vida certinha, sempre fazendo tudo tão correto, certo e perfeito me cheirou algo meio cansativo (há uma expressão melhor no espanhol: aburrido).

Pense nisto: ficar a vida toda sem a possibilidade de recomeçar a fazer algo, sem a possibilidade de aprimorar na segunda vez o que se fez na primeira, de dar um toque especial.

O fato de fazer tudo certo já na primeira vez não exige que a vida tenha recomeços. Recomeçar é característica dos seres criados, dos humanos e animais. A necessidade de recomeçar, de ter a esperança de que na próxima vez será melhor, é coisa tipicamente humana. Deus não precisa disto. Deus não tem esperança porque espera quem não tem todas as condições de realizar o que quer que aconteça.

Deus não tem a limitação do tempo. Os entendidos e definidores de como Deus é dizem que Ele é um ser a-temporal, ou seja, que não está afeito às condições do tempo. Por isto também o definem como eterno, sem princípio nem fim de dias. Não teve começo e não terá fim. Deus não se rege pelos meses, estações, luas, anos, séculos ou milênios.

Isto é coisa aqui do “andar de baixo”. Nós precisamos de uma noite para descansar (Deus não descansa, ainda que a Bíblia diga que Ele descansou e mais tarde Jesus contradiz isto dizendo que Ele e o Pai trabalham até agora). Precisamos de uma noite para renovar forças e esperanças. O salmista, afirmando algo que todos gostamos de acreditar, diz: o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.

Os dias terminam com a entrada da noite e isto é o recomeço. A noite termina com a entrada do dia e isto é recomeço.

Recomeçamos com as trocas das luas, com a entrada das estações, com a mudança dos meses, com a entrada de um ano novo. Precisamos destes recomeços, porque vivemos de esperança. E esperamos que amanhã seja melhor, que o próximo verão seja mais ao meu gosto, que no próximo Natal toda a família esteja reunida, que no próximo ano seja promovido ou ganhe mais, etc e tal.

A vantagem de ser humano é esta capacidade de recomeçar, de aprender com os erros e acertos da vida. A beleza da vida é a esperança, coisa típica e maravilhosamente humana. Quem não espera, morre.

E esperar contra toda a esperança foi a grande obra de Abraão, o pai da fé. Precisamos esperar por dias melhores com as tragédias que se abatem sobre a humanidade, quando acabo de ouvir que um milhão quatrocentos e cinquenta mil pessoas estavam ontem infectadas com a Covid, que quase quinhentas mil pessoas estão desalojadas com as chuvas na Bahia e Minas Gerais. É o jeito de sobreviver a estas catástrofes que não produzidas por mãos humanas e que alguns estarão perguntando se não foi um erro de Deus. Espero que tenhamos um presidente melhor, que se faça presente nas tragédias e assuma o controle nestas situações e não vá tirar férias quando o país mais precisa de governo presente. Ou terá sido mais benéfico que ele esteja distante?

Marcos Inhauser

DO CAOS À NOVIDADE

Característica comum a todas as culturas é terem uma estória para a criação do mundo que têm elementos míticos, uma vez que há a ação dos deuses intervindo para a criação do mundo material. Outra bastante comum é que elas partem do caos para a criação.

A cosmogênese bíblica não foge a este padrão. Ela parte do caos para a o ordenamento pela Palavra de Deus. A expressão bíblica de que a terra “estava sem forma e vazia” (no hebraico tohu vabohu), indica esta situação de algo caótico, desolado. A visão bíblica é que a ordem veio pelo ordenamento dado por Deus ao proferir ordens: “haja luz”, “haja firmamento”, “haja separação”.

Estes relatos trazem uma lição tão antiga quanto a humanidade: é do caos que sai a novidade, é da crise que sai o novo, é da catástrofe que surge o diferente. Se a morte, segundo o poeta, é a única certeza da vida, ele se esqueceu de dizer que os problemas, as crises, o caos também o são. E por mais antiga que seja a convivência humana com situações adversas, cada vez que por elas passamos nos sentimos despreparados, incapazes, amedrontados, desesperançados.

Há um sentimento de caos nestes dias de fim-de-ano. Há uma desordem, sufoco, um cheiro de 620.000 mortes, falta de tempo e espaço, incertezas mil, caos no final de cada ano. Com qualquer pessoa que se converse, a frase mais ouvida é; “correndo muito”. Ao se olhar para as pessoas andando nos locais comerciais, nas ruas, nos trabalhos, se tem a certeza desta afirmação.

A impressão é que, na magia de um fim-de-ano, quando um ano calendário está com seus dias contados, há a necessidade psicológica de viver o mais intensamente possível os minutos que restam. É uma profusão de formaturas, almoços, jantares, amigos secretos, balanços, inventários, viagens, reuniões de família. Há um desejo de fazer nestes dias o que não se fez todo o ano.

Esta canseira toda encontra na novidade de um novo ano a esperança de dias melhores. Na cultura brasileira, depois das festas vêm as férias para uma boa parcela da população. O descanso para o recomeço, o fôlego tomado na maratona da vida.

O que seria de nós se não houvesse a esperança do recomeço de uma segunda-feira, de um dia primeiro de cada mês, de um ano novo? O que seria de nós se depois de cada caos não houvesse a novidade? O que seria de nós se o caos fosse eterno?

Graças a Deus há coisas novas e vinho novo que arrebenta odres velhos.

Marcos Inhauser

 

NATAL: O ENCONTRO COM O TU

A grande ironia dos tempos modernos é que o ser humano religioso, em nome de uma fé moderna, quer demonstrar sua liberdade frente ao mundo através de um processo de “desmundanização”. Por ele, acredita, estará a salvo das influências mundanas e pecaminosas. Neste raciocínio, aquele que vive “no mundo” não pode “viver em Deus”, pois viver “em Deus” e “para Deus” é separar-se do mundo. Com este paradigma, o jargão usado é “o mundão lá fora”.

Este comportamento leva a uma existência expectante e não atuante. Os fiéis da “vida consagrada a Deus” passam a ser expectadores de sermões, conferências, vídeos, filmes religiosos, frequentadores passivos de cultos onde um fala e o resto ouve. Reúnem-se semanalmente, se elogiam mutuamente nos cumprimentos, participam dos programas e depois voltam para seus guetos residenciais, sem que haja o compromisso com a mudança do contexto ou a disposição de ajuda ao próximo.

Há quem diga que os cultos das mega-igrejas são momentos de diversão para uma plateia que a si mesma se limitou nos divertimentos e entretenimentos. Como muitas abominam a televisão, o cinema, o futebol, resta-lhes participar de corais, shows gospel, louvorzão, etc. Estão mais parecidos a bonecos de marionete que a seres pensantes, porque pensam e acreditam no que pedem para acreditar.

Dia destes, em uma fila, havia duas mulheres atrás de mim dizendo que o pastor da sua igreja tinha ido à sua casa e tinha mandado desmanchar a árvore de natal, porque é símbolo pagão. A outra contou que foi pedir ao pastor se podia montar a árvore e ele disse que podia, mas sem as bolas e os enfeites. Ela então disse à amiga que tinha ficado “chocha”, mas que ela não queria desobedecer à igreja. Como diagnosticaria Tillich, trata-se de heteronomia e não autonomia. Seres guiados pela cabeça de outros e não pelas suas próprias crenças.

Tal como já disse em postas anteriores, este é um processo de “des-individuação”, de despersonalização. Ao invés de se colocar diante de Deus como Tu que dá identidade e individualidade, ela terceiriza a responsabilidade para o guru religioso e se coloca diante de um “tu” menor e grotesco, muitas vezes semi-alfabetizado. O colocar-se diante do Tu divino é pavoroso, porque diante da santidade. Isto foi o que aconteceu ao profeta Isaías e a Moisés quando estiveram diante de Deus. Isto foi o que o teólogo Rudolf Von Otto disse ser o “numinoso”.

No Natal este encontro se deu e se dá. É o tempo para estar diante do Tu divino e ser confrontado, exigindo de cada um a sua posição e decisão. Não se terceiriza este encontro e esta responsabilidade. Mas a moderna fé e marketing, retiraram o Tu e colocaram o Papai Noel como centro das comemorações. Tal como na experiência religiosa aqui considerada, somos colocados diante de um ser grotesco que não nos individualiza, antes nos comercializa e objetifica. Deixamos de ser humanos e passamos a ser consumidores. Nas mega-igrejas o processo é o mesmo: consumidores de um espetáculo religioso! A comunhão vai para o espaço. Cede espaço à concentração, à multidão!

Marcos Inhauser

NA RESSACA DO NATAL

Acaba mais uma celebração de Natal. Os mais puristas dirão que lá se vão mais de dois mil anos de celebrações. Outros, mais atentos e analíticos, questionarão, considerando que não há indícios de celebração do Natal nos primórdios da Igreja e que mesmo a data do nascimento nunca se conseguiu precisar e o que se celebra é uma convenção.

Há quem coloque o início das celebrações no século IV, a partir da figura de Nicola, nascido em Pátara – Ásia Menor, figura reverenciada por diferentes tradições cristãs. Com idas e vindas na história de Nicolau, que acabou virando santo e bispo de Myra, a tradição de São Nicolau, que envolvia o distribuir presentes na noite de natal, se expandiu pela Europa no século XII. Quinhentos anos depois, os holandeses levaram esta tradição aos Estados Unidos, e também se difundiu por toda a América Latina.

Inicialmente Papai Noel distribuía os presentes montado em um cavalo. Mais tarde o escritor Clement Moore colocou o São Nicolau em um trenó puxado por renas. Mas foi a Coca-Cola quem, em 1931, fez uma campanha natalina, onde o personagem ganhou roupa vermelha, barba e enorme barriga.

Muito se escreveu criticando esta celebração do Natal onde o Papai Noel tem maior importância que o nascido, onde os presentes falam mais alto que a mensagem do nascimento de Jesus, a comilança toma espaço da fraternidade.

Há, no entanto, algumas coisas que devem ser consideradas depois que a festa acaba. Não há na cultura brasileira e, quiçá, na cultura ocidental, outro evento social que produza mais encontros familiares e de conhecidos, que promova mais tempo à mesa, mais confraternização, mais generosidade, mais perdão que o Natal. Que outro momento se tem tanta gente saindo de suas casas para visitar pais e parentes, para ter um tempo em família? Que outro evento provoca mais tempo à volta de uma mesa para uma refeição comunal? Talvez alguns citem o Thanksgiving estadunidense, mas ele tem um demérito: parte da tarde todos se sentam à frente da televisão para ver o Super Bowl. No Brasil e América Latina nem futebol tem. A televisão é de uma pobreza indescritível e o melhor é ficar conversando que ver o que passam.

Que outro evento produz mais giro no mercado, mais movimentação nas lojas, mais generosidade nos presentes, mais empregos, mais desejos de felicidade mesmo expressos a desconhecidos? Que outro evento produz mais gente engajada em solidariedade distribuindo presentes e comida aos mais necessitados, cânticos corais com apresentações nos mais variados espaços? Que outro evento inspirou tantos compositores a compor músicas, algumas que são obras primas da humanidade, como, por exemplo, o Aleluia de Haendel?

É verdade que houve quem bebeu e se excedeu no Natal. É verdade que tem gente de ressaca hoje. É verdade que tem gente que vai levar alguns meses para pagar os presentes que comprou e outros a comida que colocou sobre a mesa. Mesmo assim, nunca vi alguém reclamar da celebração do Natal. Há algo de mágico nele e sua comemoração. Tenho para comigo que o mágico é a mesa. O comer juntos é a prática mais antiga da humanidade. Já li o Yuval Harari, o Reza Aslam, o Jared Diamond e o Domenico de Masi em suas incursões sobre a história da humanidade. Não vi neles uma ênfase no comer juntos como elemento formador da comunidade, ainda que isto seja tão antigo como o ser humano. Comer juntos é compartilhar, é dar do que se tem, é beneficiar o outro com o alimento. Isto também se faz no Natal e assim se retoma a prática mais antiga da humanidade!

Com seus possíveis defeitos o Natal ainda é uma celebração maravilhosa, sem igual. Como nada é perfeito, a celebração deve continuar no que pese os possíveis exageros.

Marcos Inhauser

ANIVERSÁRIO SEM O ANIVERSARIANTE

Expulsaram Jesus Cristo do seu aniversário!

Chego a esta conclusão ao constatar in loco vários shoppings, noticiário e ter visitado a capital do Natal, Gramado. Vi um monte de Papais Noéis, vi muita iluminação, muita decoração, muita música, muito, mas muitos presentes e, por conseguinte, muita gente comprando. Mas o que não vi, salvo umas poucas e raras vezes, foi a menção a Jesus Cristo e seus ensinamentos.

Não quero aqui entrar no lugar comum de cair de pau em cima do consumismo em que se tornou o Natal, nem desandar a combater a bebedeira que se faz para comemorar quem se perpetuou pregando a prudência. Quero, sim, falar da secularização que tomou conta de um dos eventos maiores do cristianismo.

Já mencionei em artigos anteriores que o Natal se impôs em culturas tradicionalmente não cristãs. Mencionei minha experiência ao passar um Natal na China, da história que ouvi de pastores cubanos que montavam árvores de Natal para simbolizar a resistência em um regime ateu.

O Jesus do Natal é um Jesus asséptico, acessório, inerte, um xuxu que toma o tempero do contexto. Nada de recordar sua vida e obra, seus ensinamentos e a diferença que fez e ainda pode fazer na vida das pessoas e na sociedade. O Papai Noel é mais palatável comercialmente, é mais marketeiro que criança em uma manjedoura, é mais bem aceito pelas crianças. Para o Papai Noel basta que a criança tenha se comportado bem o ano todo, que tenha comido toda a comida. Ele é negociável, elemento de chantagem psicológica de pais para filhos. Se não se comportar, não tem presente; se não comer, não ganha presente.

O Papai Noel é um mascarado. Qualquer pessoa pode vestir-se de vermelho, colocar uma barba postiça e sair falando “ho-ho-ho” para a alegria da garotada. Quem se atreveria a fazer-se passar por Jesus Cristo para ensinar o estilo de vida simples, a solidariedade, a entrega da vida por amor ao próximo? Mesmo em celebrações religiosas tais como cantatas e encenações, o Jesus apresentado passou por uma cirurgia plástica para não ferir susceptibilidades. É um Jesus meio bonachão, nascido de maneira meio estranha, um pregador de amor. É um Jesus editado por um redator, onde a dimensão profética do seu ministério é retirada do texto. O mesmo se dá nas narrativas sobre a Paixão.

O Jesus do Natal está circunscrito a uns poucos lugares, a algumas poucas celebrações, a alguns pontos fora da curva. Tal como no seu nascimento, todos estão preocupados com outras coisas (o censo no caso de Jesus, o comércio no caso de Noel). O Natal que é uma celebração familiar, tem muita mais gente fora de casa, nas lojas e shoppings, lugares asseados que nada se parecem a uma estrebaria. Locais onde as músicas de natal têm encontrado cada vez menos espaço. Se ele não teve lugar para nascer, ainda hoje anda espremido e empurrado para escanteio nas celebrações do que se seria seu aniversário.

A história não mudou.

Marcos Inhauser

ESTADO ESQUIZOFRÊNICO

Não é de hoje que falo, escrevo e protesto contra o Estado brasileiro nos seus diversos níveis. Há nele um aperfeiçoamento célere quando s...